Islão, Terrorismo e Jihad: Os Amalgamas em Questão!
Artigo publicado nas Jornadas Científicas da Universidade Joaquim Chissano, edição 2021, Eixo Temático I.
É comum o uso das palavras Islão, Terrorismo e Jihad, para significar o mesmo conceito, fenómeno ou acto. Mas há uma relação de sinonímia nesse tríptico? Podem equivaler-se e substituírem-se? Procuramos aqui responder a essas questões. E para tal, fizemos uma revista sobre o que a literatura diz sobre essa matéria. Adicionalmente, procuramos encontrar elementos de continuidade e ruptura entre uma análise global (Mundo) e uma análise específica (Moçambique).
Da revista de literatura surgem algumas considerações. A primeira proposição consiste em considerações apofáticas, ao contrário de catafáticas. Assim, de forma precisa, (a) Islão não é uma religião imune à interpretações variadas; (b) terrorismo não equivale Jihad e não é um conceito que necessite de associação para determinada ideologia; (c) Jihad não é guerra santa e não representa um conceito uniforme e monolítico. Talvez a consideração mais importante: não existe, a priori, uma ligação suficientemente necessária, natural e directa entre Islão, Terrorismo e Jihad; embora que, dependendo do contexto, seja possível encontrar tal ligação. Podemos então elaborar essas considerações.
Primeiro, logo de início, a palavra Islão pode traduzir, no mínimo, dois significados, o de paz e o de submissão. Esse duplo significado já nos chama para atentar contra uma interpretação absoluta do fenómeno Islão. Por isso, dependendo de como percebemos o Islão, a interpretação de sua prática vai diferenciar-se de cada perceção. Ainda, existe o conceito de islamismo que, amiúde, faz menção a uma prática, “nociva”, do Islão. Esse conceito é, desse modo, aplicado de forma pejorativa. Aliás, os “ismos” reduzem a qualidade do debate. Limitam a complexidade do fenómeno em estudo; “ismo” é um sufixo redutor das nuances que se podem encontrar em determinado conceito.
Segundo, o conceito de terrorismo existe independente do Islão e da Jihad. Se Terrorismo independe Islão e Jihad, percebemos então que não pode existir uma aplicação relacional prática do tipo ipso facto entre terrorismo e Jihad, por exemplo – já que terrorismo faz ou ameaça fazer uso da força para ganhos políticos e determinados tipos de jihad fazem uso da força para ganhos político-religiosos. E é interessante, nessa transição de terrorismo para Jihad perceber que embora dogmática e teoricamente distantes, são conceitos praticamente próximos.
É verdade que “jihadistas” fazem, por vezes, uso do terrorismo; e é verdade que, também, terroristas fazem, por vezes, uso do “jihadismo”. Quando por exemplo os talibans lutavam para alcançar o poder político no Afeganistão, não faziam uso da narrativa político-militar mas sim religioso-politico-militar para enquadrar a ideia de Jihad dentro da sua luta e granjear mais aderentes (Wadhams, 2021). Lembrar que, até antes da presença americana no Afeganistão, longa história curta, os talibans são produto da presença soviética no Afeganistão, da luta contra essa presença e consequente vontade de liderar o Afeganistão.
Terceiro, Jihad não é uma “guerra santa” como muito se considera (Huzen, 2008). Porquanto guerra santa basear-se-ia apenas nas diferenças religiosas (Esposito, 2002). E nós vimos a existência de diferentes tipos de Jihad, como Jihad da alma (Jihad Nafs, automelhoria), ou da educação (Jihad Tarbiya, procura do conhecimento), para mencionar alguns; o que nos remete para a contextualização desta palavra se se quiser bem empregá-la. Nessora, a instrumentalização política vai ser crucial para percebermos a transformação de um tipo de Jihad para outro – normalmente da grande Jihad (inofensiva) para a pequena Jihad (materializada por meio da guerra, muitas vezes).
Relacionando agora proposições catafáticas e apofáticas, outro aspecto clarificador dessa distinção entre islão e terrorismo nos remete para uma situação empírica. Uma situação que nos questiona a lucidez do conceito “terrorismo islâmico”. Notamos que mesmo países islâmicos ou de orientação islâmica sofrem ataques terroristas de grupos catalogados de “terroristas islâmicos”, uma situação paradoxal. Tanto é que, “Catar, Emirados Árabes Unidos e outras nações árabes do Golfo Pérsico, Egito e países islâmicos não árabes, como Turquia, Malásia, Paquistão…” criaram uma coalização de cerca de 34 países para lutar contra o terrorismo, com sede em Riad (Browning & Abdelaty, 2015). Uma luta de Islão contra Islão?
Ademais, acresce a menção de uma outra noção de Jihad, trazida pelo antigo presidente tunisino, Habib Bourguiba: Jihad económica, ou de desenvolvimento. Essa outra Jihad é exemplificada na seguinte frase: “Habib Bourguiba descreveu Jihad como luta para o desenvolvimento económico da Tunísia, no mesmo sentido que o presidente americano Lyndon Johnson falou da ‘Guerra contra a pobreza'. (Huzen, 2008)
Há, na verdade uma interpretação desfasada do sentido e significado de Jihad (Esposito, 2002). Essa interpretação oculta o desenvolvimento histórico do conceito e principalmente sua aplicação na vida quotidiana das sociedades islâmicas, ao longo da história. A devida aplicação do conceito Jihad, nos obriga a desassociá-lo de guerra santa. Aliás, Jihad como guerra santa é, ou uma percepção ocidental, ou uma percepção mal-informada do Jihad no curso da história Islâmica (Huzen, 2008, 36).
Podemos terminar com a consideração sobre Jihad ofensivo e Jihad defensivo. Porquanto, o conceito de Jihad engloba elementos do Islão – quanto a origem contextual; e também do terrorismo – quanto a uma de suas formas de aplicação. Jihad é um instrumento ideológico, pois não existe um pan-islamismo que actua de acordo com objectivos específicos da Jihad.
No caso do Hamas, por exemplo, há uma politização da Jihad. Isso porque, embora a preocupação inicial do Hamas seja lutar pela libertação palestina e o estabelecimento de um Estado Palestino internacionalmente reconhecido, no seu acto constitutivo – carta do Hamas, ou carta de Deus – mencionam a necessidade de união de esforços por parte de toda comunidade muçulmana global (Umma) para lutar contra Israel (Huzen, 2008). Percebe-se que estamos face um conflito local, regional que pode tornar-se internacional devido, também, a aplicação do conceito Jihad.
Mas em outros diferentes casos, Jihad é ainda usado para legitimar ações violentas. Não apenas, igualmente para garantir apoio a tais ações violentas. Alguns vão usar para descrever a guerra contra Israel, como vimos, ou forças americanas no Iraque e Afeganistão. Na Bósnia e Kosovo, Jihad vai estar encoberta numa retórica anti-Sérvia, enquanto em Chechênia, pode se perceber Jihad num sentimento anti-russo. Anteriormente, guerras no Império Otomano e Persa foram descritas como Jihad, até mesmo conflitos entre movimentos internos de oposição. Deve-se então distinguir Jihad de luta pelo poder; certo, é uma linha ténue, mas o esforço é necessário (Huzen, 2008).
Mais ainda, reflexo dessa utilização quási-aleatória da palavra Jihad, é o facto da mesma ser usada tanto por grupos terroristas assim como grupos revolucionários, por exemplo. Mas qual linha separa os terroristas dos revolucionários? Continuando, essa prática corrobora a ideia de que embora ter uma origem contextual ligada ao Islão, Jihad nem sempre pode ser relacionado, per se, ao Islão.
Portanto, como exposto acima, a linha que distingue Jihad de política e luta por poder é extremamente tênue. Continua ténue a linha que nos distingue Jihad de revolução. Talvez elementos como legitimidade e apoio internacional “destenualizem” essa linha. Porém, um passo inicial para perceber se estamos face ao Jihad ou a uma luta pelo poder é compreender o contexto dentro da sua globalidade, incluindo os actores e sua relação, por exemplo com o Islão e com o terrorismo. A ideia de contexto é pertinente, pois se repararmos ao Afeganistão pós-1996, há uma luta entre diferentes grupos. Os talibans tomam o poder em 1996, o que faz com que outros grupos rebeldes se unam, para formar a Frente Unida, também chamada de Aliança do Norte, que consegue controlar alguns territórios e é considerado como representante legítimo do governo afegão por certos países, incluindo os EUA, que olham com reticência aos Talibans (Katz, 2020).
Outro elemento que pode nos ajudar a perceber como enquadrar este tema nos remete ao processo de formação de grupos terroristas. Isso porque, “[g]rupos como Estado Islâmico, Al-Qaeda, Talibã e Boko Haram geralmente se consolidam em regiões de minorias excluídas, dentro de países que até hoje são ditaduras, monarquias absolutistas e com histórico de violação dos direitos humanos (…)” (De Cristo, 2018). Isso nos remete ao contexto que propicia pequena ou grande Jihad: ambientes conflituosos são condição necessária para ocorrência de pequena Jihad (Jihad “da espada”), enquanto ambientes pacíficos são necessários para ocorrência da grande Jihad (Jihad intrapessoal). E muitos dos ambientes conflituosos são caracterizados pelo uso de extremismo violento do tipo terrorista.
Perspectivas para Moçambique?
Depois de 1992 Moçambique vive um período de relativa estabilidade. Pois, mesmo se existiram ameaças de retorno a guerra, essas eram localizadas e não afectavam o país como um todo, não afectavam a integridade territorial e soberania nacional. Entretanto, desde 2017, um grupo de malfeitores, começou a protagonizar actos de violência contra a população e instituições de Estado nalguns distritos da província de Cabo Delgado (Macalane & Jafar, 2021). Seguidamente, tais actos intensificaram e por meio de comunicações esporádicas nas redes sociais, alguns dos integrantes do grupo manifestavam interesse de instalar um “califado” em Cabo Delgado, ou parte de Cabo Delgado – visto que nos seus discursos há uma clara deficiência de coerência quanto aos objectivos de suas acções.
Por conseguinte, o uso de terminologia “islâmica” fez com que se começasse a usar o termo “terrorismo islâmico” para as ações do grupo supra mencionado. Por exemplo a reboque também passou-se a usar a terminologia jihad, jihadismo, e fundamentalismo islâmico para relacionar à ação violenta do grupo que reivindica esporadicamente os ataques contra a população e instituições do Estado em Cabo Delgado.
De acordo com o que se expos acima pode haver no caso moçambicano uma tentativa de explorar um nacionalismo islâmico para sustentar as ações violentas do grupo que actua no norte de Moçambique. Isso porque, primeiro, como vimos no exemplo do Hamas, o facto de apelidar uma luta de “Jihad”, tem um efeito ideológico-moral elevado no campo religioso; pois isso pode significar granjear apoios internacionais da comunidade islâmica que se identifique com tal causa. Aliás, o grupo que faz uso do extremismo violento em Cabo Delgado procura aliar-se ao que se chama de “Jihad internacional”. Exemplos disso é que o grupo auto-apelidava-se, inicialmente, ‘Ahlu Sunnah Wal-Jamâa’ o que significa, traduzido do árabe para português, ‘adeptos da tradição profética e da congregação’, tendo passado para ‘Harakat Al—Shabaab al-Mujahedeen’, ou somente ‘Al Shabaab’ (Habibe, Forquilha, & Perreira, 2019).
Notemos que essas designações não são, per se, antagónicas ao secularismo. Isso porque todos muçulmanos seguem as tradições proféticas – pois a mensagem divina foi por ele revelada. E o que significa Al Shabaab? Juventude, jovens. Então, para o caso de Moçambique, provavelmente é inadequado falar de terrorismo islâmico. De facto, há segmentos da população islâmica moçambicana que não se identificam com o grupo que actua em Cabo Delgado (RDP, 2020). Adicionalmente, parte significativa dos muçulmanos moçambicanos recusa-se identificar com esse grupo extremista violento; incluindo seus líderes, que alheiam-se as acções do grupo que actua no norte de Moçambique (RFI, 2018)
Todavia, estamos certamente face um fenómeno terrorista, na medida em que há o uso da violência extrema para obter ganhos políticos – alegada instalação de uma unidade politica baseada em princípios islâmicos (Cardoso, 2021). Agora, para percebermos se existe ou não Jihad, era importante confirmar de facto o sentido islâmico do grupo que actua em Cabo Delgado. Autointitulam-se professantes do Islão (Ibid), é verdade, e são legítimos para tal, como cada um é legitimo de se autointitular o que bem entender. E se lhes fosse dado o benefício da dúvida, consideraríamos a aplicação da palavra Jihad, não de forma absoluta.
Efectivamente, estaríamos face para pequena Jihad, do tipo ofensiva. Isso porque, se faz uso de armas e não de forma para defender um território histórico que foi atacado, mas para atacar uma entidade política já estabelecida e seus constituintes: o Estado moçambicano e os moçambicanos. Inversamente, se não lhes quisermos dar o benefício da dúvida, podemos nos indagar, retoricamente: o Homem é o que diz ser? Ou é o Homem o que ele é (por meio de atitudes e ações). Bastaria para ser Moçambicano dizer-se “sou moçambicano”, ou seria necessário corroborar a afirmação “sou moçambicano” com provas bastantes (hábitos, documentação e outros) condignas a qualidade de ser moçambicano? Importa notar que, em Cabo Delgado, as características religiosas do conflito são de importante questionamento.
Portanto, a aplicação dos conceitos Islão, terrorismo e Jihad não pode ser feita de forma indiscriminada e sumaria, para o caso moçambicano. Deve, entretanto, ser acompanhada pela prudência requerida. E a nossa exposição demonstra que mesmo para casos em que é possível aplicar determinado conceito, como o de Jihad, ainda assim, há elementos por considerar para não erroneamente o aplicar. Pois que Islão, baseado no Alcorão, embora reconhecer a existência da guerra, procura esclarecer que paz é a norma (Esposito, 2002).
E uma incompatibilidade final entre Islão e “terrorismo islâmico” é o facto de dentro da doutrina sobre como comportar-se em guerras, o Islão proibir o assassínio de civis. Civis, crianças, mulheres, rabis e monges do grupo inimigo não devem ser mortos em caso de guerra levada a cabo por uma entidade que segue estritamente os princípios islâmicos (Esposito, 2002). Ora, expusemos atrás que uma das características do terrorismo é o ataque indiscriminado contra civis – incluindo crianças e mulheres.
Uma Jihad digna desse termo, propriamente islâmica, teria as seguintes características, não exaustivas: (i) violência proporcional; (ii) livrar os civis dos ataques; (iii) declaração de guerra feita pelo líder da nação. E nessa senda, os bombardeamentos suicidas são contraintuitivos na medida em que o Islão proíbe o suicídio (Esposito, 2002). Estaria assim, iniciada a delimitação entre Islão e “terrorismo islâmico”, que também não é jihadismo.
Referências Bibliográficas
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