A actualidade da elocução inaugural (1961) de John Fitzgerald Kennedy
A actualidade da elocução inaugural (1961) de John
Fitzgerald Kennedy
Este texto estuda, resumidamente, o discurso de tomada de
posse de John F. Kennedy, para extrair elementos que continuam pertinentes.
Aliás, este é um discurso historicamente póstumo. Entrementes, atenta-se para o
facto de implícita e explicitamente, existir neste discurso a propaganda
americana. Como existe em qualquer discurso presidencial bem elaborado, a
respectiva propaganda do país e dos ideais de quem comunica e de sua respectiva
comunidade – partido político, grupo de interesse, mencione-se. É parte da doxa
política expor constantemente a propaganda desejada. Porém, faz-se aqui um
esforço para ir além dessa propaganda, para se esquivar dessa retórica e
encontrar apenas os aspectos práticos e aplicáveis à actualidade, não apenas para
os Estados Unidos da América (EUA), mas, e principalmente, também para o mundo
e para Moçambique, quando aplicável. Por vezes mesmo, há alguma denuncia dessa
propaganda. Uma das qualidades deste discurso é sua fácil maleabilidade e
contextualização.
Mas é legitimo que se pergunte porquê os EUA, porquê Kennedy
e porquê tal discurso. Bem, os EUA, para bem ou para mal, são uma referência
internacional, em virtude do seu poder multidimensional. O são também seus
líderes, ergo suas atitudes, ergo seus discursos. E Kennedy
assumiu a presidência dos EUA num período interessante, tendo este sido seu
único discurso inaugural, pois foi assassinado ainda quando cumpria seu
primeiro mandato. É assim que o emblema deste discurso pode ser considerado
eternalmente actual: perguntem-se, não o que vosso país pode fazer por vós,
perguntem-se o que vocês podem fazer para o vosso país (ask not what your
country can do for you, ask what you can do for your country).
Kennedy efectuou este discurso a 20 de janeiro de 1961,
quando o mundo vivia um período de tensões políticas. Não apenas; se vivia um
período de tensões militares, tensões ideológicas, tensões sociais, tensões culturais,
para mencionar algumas. Essas tensões opunham o capitalismo e o socialismo, esquematicamente.
Tensões entres os (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)
que, ambos, lideravam vários outros países. Estávamos no período da guerra fria,
período da ordem bipolar. E este discurso reflecte esse período histórico. Mas
o que o torna digno de interesse é sua característica atemporal.
Decerto, é um discurso historicamente póstumo, materialmente
posterior a guerra fria, na medida em que ele avança elementos que continuam
pertinentes. Mas para um discurso tão rico como este, é necessário um livro. Por
isso apenas selecionam-se aqui os aspectos mais relevantes e os relacionamos aos
acontecimentos presentes. Existindo assim elementos que não são tratados neste texto,
mas que tenham eventual importância.
Inicialmente, Kennedy afirma a ideia de despartidarizar
seu discurso, considerando o fim e o começo de um ciclo, renovação e mudança. A
ideia de despartidarização é importante porquanto um país, independentemente do
seu nível económico ou social, precisa de todos seus nacionais para poder se
desenvolver. Entretanto, quando os interesses partidários se sobrepõem aos
interesses do Estado, pode-se corroer o tecido político, depois, social do
país. Da necessidade de se promover e solidificar a coexistência pacífica entre
diferentes partidos, mas acima de tudo entre diferentes ideias, quais são a
fonte da edificação do Estado. A ideia de ciclos é igualmente interessante pois
vivifica a noção de não nos amedrontarmos a efectuar mudanças e reavaliar
nossas atitudes.
Seguidamente, Kennedy menciona a relevância dos Direitos Humanos
(DH). Expressa que os direitos dos homens não são da generosidade do Estado,
mas da propriedade divina. Este ponto é importante porque nos informa que os DH
não devem ser acordados para alguns, excluindo os outros. Isso é, não se deve
discriminar os cidadãos na aplicação dos DH. Aliás, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, lembra a característica ecuménica dos DH. Direitos
concedidos para todos.
Extensivamente, existe a ideia de que os EUA vão defender
a liberdade em e para todos países. Mas, temos de observar que essa defesa, na
prática, vai depender dos interesses dos EUA e não propriamente da aplicação ou
não dos DH. Dai que os EUA vão por vezes, durante a guerra fria principalmente,
apoiar países com registos deploráveis de DH e opor-se a países menos
violadores dos DH, principalmente na América Latina, por meio da aliança para o
progresso e outros instrumentos politico-diplomático-militares.
Por conseguinte, surge a ideia de cooperação
internacional. Kennedy informa aos aliados que “unidos existe pouco que não
podemos fazer […] e divididos existe pouco que podemos fazer (united there
is little we cannot do (…) divided there is little we can do)”. O que
continua actual. Pois, a cooperação internacional permite a maximização e
diversificação de esforços para o alcance de soluções comuns. As ideias,
projectos e programas se complementam. Por exemplo, no âmbito da áfrica
austral, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), Organização
Internacional (OI) qual Moçambique faz parte, permite a cooperação e
concentração de esforços para avançar a discussão de problemas comuns.
Por seu turno, emerge a referência sobre os novos países.
Os que nessora saiam da colonização, tornavam-se independentes. Embora
actualmente não existam tantos países ganhando independência, existem ainda países
que lutam para consolidar sua independência, além de existir ainda novas formas
de colonialismo, cultural, social, ambiental, etecetera – neocolonialismo. Em
1961, Kennedy aludia que “uma forma de colonialismo não vai substituir outra”.
Verifica-se que actualmente, é necessário resgatar essa
ideia. Porquanto percebemos que a colonização não é um fenómeno do século
passado e suas características persistem ainda hoje, quase um século depois do
seu advento institucional (a relativizar, pois a colonização e descolonização sempre
existiram). Mais adiante, Kennedy diz “deixe[mos] os oprimidos serem livres (let
the oppres go free).” Essa referência aos oprimidos, pode ser relacionada
aos conflitos raciais nos EUA, visto que Kennedy emerge com uma agenda
progressista no âmbito da luta contra a segregação racial e avanço das liberdades
das minorias, principalmente a de “raça negra”.
Porém, ainda hoje persistem tensões raciais nos EUA,
aonde fala-se de racismo institucional – racismo promovido por instituições
estatais. Exemplo flagrante são as constantes mortes de cidadãos de “raça negra”
nas mãos de oficias da polícia de “raça branca”. A mais recente, emotiva e
viral, foi a morte de George Floyd, fenómeno que engajou manifestações mundiais
contra o racismo e fortificou o movimento Black Lives Matter (Vidas
Negras Importam).
Por sua vez, a ideia de tirania emerge nesse discurso
numa evidente ligação com o colonialismo. Kennedy diz que “no passado, aqueles que
procuravam o poder cavalgando por trás de um tigre, terminaram dentro do tigre
(In the past, those who sought power by riding the back of a tiger, ended up
inside).” É um aforismo que nos mostra as consequências nefastas da
tirania. Ambas estrangeira, mas também interiores. Olhe-se para os países
actualmente deflagrados por guerras e tensões sociais, como Síria, Líbia ou
Iraque, e relacione-se a vontade de poder das potências internacionais e dos
líderes desses países!
Quanto a ajuda internacional, a ajuda para o
desenvolvimento, Kennedy considera nessora que deve-se ajudar porque é o certo
a fazer e não porque os comunistas estão a fazer ou porque os EUA precisam do
apoio dos ajudados. Essa ideia, isolada da prática, é magnifica e moralmente
nobre, mas quando analisada no contexto internacional actual e mesmo do período
Kennediano, ela se mostra de uma imensurável dissimulação. Pois, os países
“ajudam” sob forma de investimento, isso é, para ganhar algo em troca. E esse
retorno é muitas vezes material e não moral.
No entanto, essa consideração é interessante quando
descemos o nível de analise. Quando analisamos o individuo e a sociedade aonde este
vive. É importante nutrir a sociedade dessa característica de ideias para propiciar
uma sociedade mais humana e coesa, aonde a ajuda não espera alguma troca. Aqui
podemos terminar com a ideia de que “se uma sociedade livre não pode ajudar os
muitos que são pobres, ela não pode salvar os poucos que são ricos (if a
free society cannot help the many who are poor, it cannot save the few who are
rich”. Uma alusão para se combater a desigualdade social e construir uma
sociedade baseada na justiça social.
Keennedy, extende seu discurso para a Organização das Nações
Unidas (ONU). Observa a necessidade de lha renovar para que os novos países
possam lha reforçar. Se avançada em 1961, essa opinião encontra ressonância
actual nas proposições de reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNA). Efectivamente, agora os países em desenvolvimento e emergentes
liderados pelo Brasil, India e o grupo africano por exemplo, procuram alterar a
composição do CSNA que, nos lembremos, é feita pelos EUA, Rússia (herdeira do
capital político e militar da URSS), Reino Unido, França e República Popular da
China.
E a ideia de reforma é mesmo partilhada por alguns países
ocidentais, como a França por exemplo, havendo discordância no mecanismo da sua
operacionalização, na estrutura do eventual futuro CSNU. Em 1945, os actuais
membros do CSNU manifestavam a divisão global do poder, económico, populacional
e militar. Porém, hoje, Brasil, Nigéria, Egipto, India, Japão, México, entre
outros países relativizam o poder (quando percebido de forma multifacetada) dos
membros do CSNU, mas não estão representados neste órgão, de forma permanente. Olhe-se
ao anacronismo do CSNU!
Todavia, como não podia deixar de acontecer, Kennedy
menciona os adversários. Considera que “civilidade não é um sinal de fraqueza e
sinceridade é sempre sujeita à prova. Nunca devemos negociar por medo, mas
nunca devemos ter medo de negociar. (Civility is not a sign of weakness and sincerity
is always subject to proof. Let us never negotiate out of fear but let us never
fear to negotiate”. Esta
citação de Kennedy não poderia ser mais autoexplicativa. E é interessante notar
que pouco tempo depois, tivemos a crise dos misseis de Cuba (outubro de 1962).
Nesta crise, o senso diplomático de John Kennedy e de Nikita Khrusctchev,
secundados pelas iniciativas de Robert Kennedy (procurador-geral dos EUA) e
Anatoly Dobrynin (embaixador soviético em Washington), evitou uma catástrofe
nuclear.
Podemos entrementes, para o caso de Moçambique, adicionar
que é necessário manter a civilidade de não cometer os erros e desumanidades
cometidas por nossos inimigos, mas simultaneamente, não retrair os esforços de
combate contra os inimigos que nos combatem. Sobretudo, quando necessário, para
proteger vidas e a estabilidade do país, não se deve retrair os esforços de se aproximar
aos que pensam diferente e os integrar na sociedade. Aqui, o processo de
reintegração social dos ex-guerrilheiros da RENAMO é um aspecto salutar.
Ainda, Kennedy menciona a ideia de controle das armas
nucleares, quando considera a necessidade de “trazer o poder absoluto de
destruir outras nações sobre o absoluto controlo de todas as nações. (bring the absolute power to destroy other nations
under the absolute control of all nations)”. Quando olhamos para os conflitos, no sentido lato da
palavra, entre China versus India, Paquistão versus India,
Correia do Sul versus Correia do Norte, Irão versus Israel, entre
outros, mesmo que a possibilidade nuclear resta limitada, existe sempre o risco
de sua ocorrência. E se abstrairmos para situações fora do quadro de conflitos,
a memória de Chernobyl (desastre nuclear na Ucrânia, URSS, na década 1980)
continua viva. Essa ideia é para relacionar ao bom uso da ciência, que é
igualmente avançada por Kennedy.
Mais para o fim da elocução, Kennedy relaciona balança de
poder (balance of power) a nova ordem (new order). Menciona “não
uma nova balança de poder, mas uma nova ordem de direito aonde os fortes são
justos e os fracos seguros, e a paz preservada (Not a new balance of power
but a new world of law where the strong are just and the weak secured, and the
peace preserved).” Ademais, Kennedy fala dos inimigos da humanidade: tirania,
pobreza, doença e guerra. Acrescenta que esses males precisam de uma aliança
global para que sejam vencidos.
Com a COronaVIrusDisease_2019 (covid_19) a obrigar
mudanças drásticas no modo de vida de diferentes países, não podia essa
consideração ser mais actual. Principalmente se atendermos que a covid_19
afectou todos os continentes e precisa de uma resposta concertada. Quanto as
guerras, elas ainda persistem e causam graves problemas, sociais e de saúde,
dificultando uma vida plena das populações afectadas. Veja-se o Iémen!
Contudo, Kennedy observa que “poucas gerações foram dadas
o papel de defender a liberdade enquanto ela se encontra em máximo perigo; eu
não me encolho face a esta responsabilidade, eu a recebo. (few generations have been granted the role of
defending freedom in its hour of maximum danger; I do not shrink from that
responsibility, I welcome it)”. Um
chamamento para a geração actual, principalmente os jovens a engajarem-se no
contributo ao desenvolvimento de seus países, de forma categórica.
No caso moçambicano, se mostra o momento de defender a
liberdade e integridade territorial nacional ameaçada pelos terroristas em Cabo
Delgado, cada um, por meio de suas capacidades. Mas se mostra ainda mais importante
contribuir, ainda dentro das nossas capacidades individuais e de grupo, na
compreensão do covid_19, prevenção do seu contágio, e oferta de alternativas de
solução. Estende-se essa necessidade para outros males que afectam o país:
cólera, malaria, HIV/SIDA, tuberculose.
Assim, Kennedy termina seu discurso considerando que: “e então
(…) se perguntem, não o que vosso país pode fazer por vós, se perguntem o que
vocês podem fazer para o vosso país. Meus companheiros cidadãos do mundo, não se
perguntem, o que América pode fazer por vós, mas o que juntos podemos fazer
para a liberdade do Homem. (And
so (…) ask not what your country can do for you, ask what you can do for your
country. My fellow’s citizens of the world, ask not, what America can do for
you, but what together we can do for the freedom of men).
Finalmente, este é um discurso optimista e se comparado à
prática encontra muitos limites. Talvez se vivesse mais, Kennedy pudesse
alcançar alguns dos aspectos aqui mencionados, talvez não. Mas em termos
teóricos, este é um discurso rico e que pode ainda ser fonte de inspiração para
construção de comunidades, sociedades, países, continentes e sobretudo, um
mundo melhor. Um mundo justo e cooperativo. Entrementes, Kennedy admite que
suas proposições não serão alcançadas durante cem (100) dias, talvez nem
durante o seu mandato e talvez nem durante a vida dos presentes no seu
discurso, mas fala da necessidade de começar. Encontramos aqui a humildade de
Kennedy que percebe a distância entre o discurso e a prática, o ideal e o real,
o planificado e o operacionalizado. Comecemos então a construir uma sociedade
moçambicana que se torna melhor a cada dia.
Fonte do discurso:
CBS (arvhives), vídeo: President John F. Kennedy’s
Inaugural Address.
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