Da necessidade de uma reconceptualização do “lixo”

Da necessidade de uma reconceptualização do “lixo”

Os conceitos ajudam-nos a perceber e forjar a nossa representação do mundo. Eles permitem que se crie uma relação entre a ideia e a matéria. Começam essa projeção do entendimento para a agentividade. Por isso os usamos. E por isso o conceito de “lixo” merece uma revisão. Aliás, ousemos: uma reconceptualização.

O lixo é comumente conceptualizado como “[r]esíduo [isso é, resto] resultante de actividades domésticas, comerciais, industriais, etc., e que se deita fora.; detritos, sobras.” (Dicionario Priberam, 2020). Depois, no estado de natureza, não existe o conceito sintético e prático de lixo. Atentemos para o facto de que o “(…) conceito de lixo está ligado a um produto que foi descartado e que não tem valor nenhum. (…) Portanto, as causas do lixo [são] puramente uma acção humana de descarte de um produto. Se (…) observar bem, na natureza o ser humano é o único animal que produz lixo” (Machado, 2020). E um complemento técnico pode ser aqui adicionado: “Lixo que pode ser reaproveitado de alguma forma, passa a se chamar resíduo sólido. O que não pode ser aproveitado se chama então de rejeito” (ibid).

Entretanto, num mundo com recursos limitados essa definição pode causar problemas cognitivos. Como usar e deitar sem limites, se os recursos para fabricar o que usamos e deitamos e deitamos, são limitados? Pensemos nessora alternativamente, de forma prática. Pensemos em reduzir a quantidade de lixo e eventualmente eliminar. Mas para chegarmos para a prática, precisamos passar pela teoria. E por isso, a ideia de reconceptualizar lixo pode ser razoável.

O objectivo dessa reconceptualização é fazer com que possamos aproveitar o que hoje consideramos lixo. Porquanto se o que hoje é lixo amanhã deixa de ser lixo, poderá então ser usado como qualquer outro objecto, como um recurso, reduzindo assim gastos económicos e prevenindo eventual saturação ambiental. Isso porque a gestão de lixo, quando descontrolada, pode ocasionar problemas ambientais. E para o contexto do nosso país, aonde por vezes recursos financeiros são escassos, essa necessidade de poupança e de dificultar a deita de objectos pode se mostrar instrumental para elevar o nosso bem-estar.

Complementarmente, importa mencionar que o “(…) lixo é sem dúvidas um dos maiores problemas sociais da atualidade. Cólera, disenteria, febre tifoide, filariose, giardíase, leishmaniose, leptospirose, peste bubónica, salmonelose são apenas algumas das doenças relacionadas ao lixo doméstico” (Machado, 2020) Eis ai outra advocacia real e justa para uma reconceptualização do lixo. Pois, reconceptualizar vai inerentemente significar melhor cuidado com o que se pretende descartar. Melhor organização para descartar e a redução do que se descarta.

Todavia, os parágrafos acima parecem transparecer a ideia de reciclagem. Não, o reconceptualizar do lixo não pode nos limitar para reciclagem. Isso porque, “(…) reciclagem é o processo de aproveitamento de resíduos que envolve a alteração de suas propriedades físicas, físico-químicas ou biológicas” (ibid). A reconceptualização do lixo, pode, no entanto, integrar a reciclagem e outras técnicas que permitam a reutilização do que hoje chamamos de lixo. Mas vai além delas. 

Assim, por reconceptualização se quer dizer o abandono da ideia de que os produtos podem apenas ser usados uma vez e a introdução da ideia de que os produtos podem ser sempre usados e reusados. Porquê pensar assim? Porque se usarmos ao infinito os productos, (i) propiciaremos uma maior criatividade à nossa sociedade, (ii) reduziremos os gastos para adquirir novos productos, (iii) e por consequência reduziremos o impacto ambiental adverso causado pelo que chamamos hoje de lixo. E se naturalmente esses processos são possíveis, então apenas precisa-se de um compromisso social.

Esses três pontos têm intrinsecamente efeitos positivos secundários. Pois, a criatividade não vai limitar-se ao que percebemos hoje como “lixo”, na medida que criatividade é um processo arborescente; uma criatividade leva para outra. Seguidamente, pouparemos na aquisição de novos productos como exposto acima. Desse modo, redirecionaremos para outras actividades as finanças poupadas. E se isso começa pelo individuo, é um processo extensível aos grupos e entidades publicas e privadas. Teremos assim a possibilidade de criar uma sociedade mais economicamente sóbria. Por fim, é um tanto quanto evidente que todos esses aspectos podem nos fazer transitar para uma sociedade ambientalmente sustentável. E se alcançarmos a sobriedade económica, facilmente alcançaremos a sobriedade ambiental. Cá é pertinente expor a sobriedade intelectual, facilmente alcançável pela constante inventividade acima mencionada.

Finalmente, o conceito de lixo, como percebido acima, é estritamente material. Mas nós temos uma vida imaterial, igualmente. Indaguemo-nos, quantas vezes produzimos lixo imaterial? Pois é, o conceito de lixo encontra limites não apenas no estado natural dos fenómenos humanos, mas também no estado imaterial. Observemos a necessidade de sua reconceptualização. Podemos assim terminar com uma frase instrutiva de Robin Nigal: “trash does not existe, we could decide: it is not trash. It is simply something in between my use and the next use” (lixo não existe, nós podiamos decider: não é lixo. É apenas algo entre o meu uso e o próximo uso). Portanto, paremos de usar a designação “lixo”. O que usaremos por substituto? Bem, apelemos à nossa inventividade. Entrementes, por enquanto, fiquemos com a ideia de reutilizável.

 

Referências

1.       Dicionario Priberam. (2020, setembro 19). Dicionario Priberam. consutado no dicionario.priberam.org: dicionario.priberam.org>lixo

2.   Machado, G. B. (2020, setembro 19). Portal Residuos Solidos - PRS. consultado no potalresiduossolidos.com: portalresiduossolidos.com>o-que-e-lixo-?

 

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