O Significado da Acusação de Genocídio da África do Sul Contra Israel

 

A África do Sul submeteu, a 29 de dezembro de 2023, à Corte Internacional de Justiça (CIJ), uma acusação de genocídio contra Israel. “A submissão da África do Sul ao Tribunal Internacional de Justiça alega que ‘os atos e omissões de Israel... são de carácter genocida’, uma vez que são cometidos com a intenção de ‘destruir os palestinianos em Gaza como parte da comunidade palestiniana nacional, racial e étnica mais ampla’. O processo pede também ao tribunal com sede em Haia que emita uma ordem provisória para que Israel suspenda imediatamente as suas operações militares em Gaza” (VOA Português, 2024).

Antes de centrarmo-nos ao objecto do texto, isso é o significado da acusação da África do Sul, importa saber o que é CIJ, qual doravante designaremos por Corte. Muitas vezes confundida com o Tribunal Penal Internacional (TPI), a CIJ se distingue do último na medida em que a Corte julga disputas entre Estados, enquanto o Tribunal julga indivíduos. Essas duas instituições internacionais têm jurisdição sobre os territórios dos Estados signatários dos respectivos documentos.

Por um lado, o tribunal “julga indivíduos por genocídio, crimes de guerra, crimes contra humanidade e agressão” (International Criminal Court, 2024); o tribunal julga cidadãos de Estados parte do que se chama “Estatuto de Roma”, um dos documentos constituintes do tribunal. Assim, a jurisdição do tribunal se limita aos Estados que fazem parte do estatuto de Roma, e consequentemente, os respectivos cidadãos. Por outro lado, a Corte “é o principal órgão judiciário das nações unidas” (International Court of Justice, 2024); assim, a Corte julga Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Resumidamente, Tribunal (TPI) para indivíduos e Corte (CIJ) para Estados.  

Uma vez feita a distinção acima, entre TPI e CIJ, podemos começar a elaborar sobre o significado da acusação da República da África do Sul (RAS) e consequente decisão da Corte. Por significado, queremos nos referir ao sentido, o nexo, a acepção e sobretudo, as nuances da acção de política externa sul-africana. Ora, da física nos é legado o princípio de que toda acção causa reação, ou reações, se quisermos. E a acção da RAS não faz excepção. Porquanto, o significado dessa acção (RAS) esta no caminho entre acção e reação (pronunciamento da Corte e outros actores internacionais).

Primeiramente, notemos que a corte considerou que tem jurisdição para julgar o caso, contrariamente ao que Israel sugeria; considerou, igualmente, que qualquer parte (Estado) pode aplicar (mover uma acção) contra outra parte (Estado), sem que, necessariamente, esteja envolvida no caso, de forma directa (Guardian News, 2024). É importante lembrar esses aspectos porquanto um dos argumentos de Israel considerava que RAS não era legitima por não estar directamente envolvida no conflito.

Nessora, podemos mencionar o mérito da acusação da África do Sul, na medida em que Israel considerava que África do Sul não podia fazer a acusação pois não estava numa disputa directa com Israel. Esse mérito é secundado pelo facto de, tanto a África do Sul assim como Israel, serem partes da Convenção sobre Genocídio de 1948, de nome integral “Convenção sobre Prevenção e Punição Para o Crime de Genocídio”, de dezembro de 1948. Importa lembrar que essa convenção surge no contexto do fim da segunda guerra mundial, guerra que foi marcada por inúmeras atrocidades (International Committee of the Red Cross, 2024) que se enquadram na categoria de genocídio, incluindo o Holocausto Judeu – assassinato sistemático e metódico de mais de 6 milhões de judeus, pelas forças nazis e seus colaboradores.

Assim, a RAS, procura medidas provisórias para proteger a população em Gaza, um dos territórios ocupados por Israel, além da Cisjordânia (United Nations, 2024). E essa pretensão foi minimamente conseguida, pois a corte adoptou as seguintes medidas provisórias, que devem ser tomadas por Israel: prevenir e punir incitamento directo e público para genocídio; tomar medidas imediatas e efectivas para garantir a provisão de assistência humanitária aos civis de Gaza; preservar as evidências de genocídio e submeter à corte dentro de um mês após a deliberação da Corte (Amnesty International, 2024). 

Outras medidas incluem a necessidade de Israel permitir assistência humanitária para tornar a vida em Gaza menos áspera. É de notar que a adopção das medidas provisorias foi por maioria de votos dos juízes da corte, onde num universo de 17 juízes, apenas dois votaram contra maior parte das medidas e uma votou sistematicamente contra.

As medidas provisorias são, na terminologia da Corte, “medidas interinas requisitadas pelo Estado aplicante se este considerar que direitos que formam a aplicação estão em perigo imediato” (International Court of Justice, 2024). No caso, foram medidas pedidas pela Africa do Sul, e concordadas pela Corte. O nexo das medidas provisórias enquadra dois conceitos: gravidade e urgência. Isso é, senão aplicadas, o que se pretende proteger pode ser destruído, pela gravidade das ações que acontecem e a forma rápida das mesmas: no caso os ataques de Israel contra os civis em Gaza.

Resumidamente, o facto das medidas provisórias propostas pela RAS terem sido adopadas pela Corte, é inequívoco o mérito da acusação Sul-Africana. Assim África do Sul coloca-se no prolongamento histórico de defesa dos Direitos Humanos, Solidariedade Internacional e, sobretudo, de luta contra o Apartheid. Isso porque, segundo a Amnistia Internacional (2022), Israel pratica Apartheid contra os palestinianos. E tendo África do Sul estado sob regime do Apartheid, oficialmente entre 1948 (com a legalização) ate 1994 (com a entrada em vigor da nova constituição), nenhum outro Estado estaria em melhor posição para denunciar o actual Apartheid de Israel.

Não menos importante, um dos principais ícones do combate contra o Apartheid, Nelson Mandela, disse, a 4 de dezembro de 1997, aquando da celebração do dia internacional de solidariedade com o povo palestino: “nós bem sabemos que a nossa liberdade está incompleta sem a liberdade dos palestinianos (…)” (Mandela, 1997). Então, a acusação que África do Sul liderada pelo African National Congress (ANC) faz hoje (2023/2024), insere-se nessa coerência histórica de solidariedade entre os movimentos de libertação nacional e de luta anticolonial e anti-imperialista. Na Palestina essa luta foi durante muito tempo liderada pela Organização de Libertação da Palestina (OLP).

Finalmente, se o significado jurídico foi demonstrado pelo mérito da acusação sul-africana, e o significado histórico pela luta paralela do ANC e OLP contra o racismo, colonialismo e imperialismo, ela (a acusação da África do Sul contra Israel) tem igualmente um significado político-diplomático. O significado político-diplomático emerge, mesmo dentro da história, do facto de ser um Estado africano que está a participar activamente do rumo da história, o que não é comum, já que muitas vezes os Estados africanos seguem ou reagem aos acontecimentos internacionais: aqui a RAS está a condicionar os acontecimentos internacionais, está a criar a necessidade de discussão de um assunto, por mérito próprio.

In fine, temos de reconhecer que embora o significado jurídico, histórico e político-diplomático da acusação da África do Sul, na prática pouco muda. Isso deve-se ao facto do cumprimento das medidas provisórias depender do interesse de Israel e não existir um órgão que vai obrigar Israel para que lhas cumpra. Para tal, teria de se passar pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e dai se aprovar uma resolução para fazer-se respeitar a lei, o que é pouco provável que aconteça, considerando os vetos sucessivos e sistemáticos dos Estados Unidos para resoluções que não se adequem aos interesses de Israel. 

 

Bibliografia

Amnesty International. (26 de January de 2024). Israel must comply with key ICJ ruling ordering it do all in its power to prevent genocide against Palestinians in Gaza. Obtido de Amnesty.org: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2024/01/israel-must-comply-with-key-icj-ruling-ordering-it-do-all-in-its-power-to-prevent-genocide-against-palestinians-in-gaza/#:~:text=The%20ruling%20issued%20by%20the,assistance%20to%20civilians%20in%20Gaza.

Guardian News. (January de 2024). ICJ announces interim genocide case ruling on Israel's war in Gaza – watch live. Obtido de https://www.youtube.com/watch?v=Rjd54s9gVDk

Info, T. (2024). Le gouvernement sud-africain qualifie les actions d'Israël à Gaza de "génocide". Obtido de https://www.youtube.com/watch?v=m8LIi39ITBw

International Committee of the Red Cross. (01 de February de 2024). Convention on the Prevention and Punishment for the Crime of Genocide, 9 december 1948. Obtido de ICRC: https://ihl-databases.icrc.org/en/ihl-treaties/genocide-conv-1948#:~:text=in%20these%20languages-,Convention%20on%20the%20Prevention%20and%20Punishment%20of,of%20Genocide%2C%209%20December%201948.&text=The%20Convention%20on%20Genocide%20was,II%20and%20fol

International Court of Justice. (01 de February de 2024). International Court of Justice. Obtido de ICJ: https://www.icj-cij.org/home

International Criminal Court. (01 de February de 2024). International Criminal Court. Obtido de icc: https://www.icc-cpi.int/

Mandela, N. R. (4 de Dezember de 1997). Address by President Nelson Mandela at International Day of Solidarity with Palestinian People, Pretoria. Obtido de Mandela.gov.za: http://www.mandela.gov.za/mandela_speeches/1997/971204_palestinian.htm

Nations Unies - Droits de l'Homme. (2004). Convention pour la prévention et la répression du crime de génocide. Obtido de Nations Unies - Droits de l'Ho,me: https://www.ohchr.org/fr/instruments-mechanisms/instruments/convention-prevention-and-punishment-crime-genocide

United Nations. (12 de January de 2024). South Africa levels accusations of ‘genocidal conduct’ against Israel at UN Int'l Court of Justice. Hague.

VOA Português. (29 de Dezembro de 2024). África do Sul acusa Israel de genocídio no Tribunal Superior da ONU. Obtido de Voice of America: https://www.voaportugues.com/a/%C3%A1frica-do-sul-acusa-israel-de-genoc%C3%ADdio-no-tribunal-superior-da-onu/7417692.html

 

 

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